Da poiésis digital de André Vallias


Talvez seja a poiésis, a raiz primordial da poesia, precisamente, seu mais futuro horizonte. O lado mais promissor na sua inveterada crise com a palavra, que não com o sentido do indizível, já que este é seu moto-perpétuo: inventar sempre uma linguagem para aquilo que não tem (poesia ñ importa o q), ou melhor, criar uma semântica que amplia a linguagem. Sabedor disso, André Vallias prática, há mais de uma década, um grau de exploração poética que se estende mais do que pela multiplicação de campos e gêneros, pela sua estreita interface, pela sua contaminação in crescendo. De tal forma, que toda a sua produção visual – um amplo leque onde haveria que inscrever sites ou trabalhos de encomenda – apresenta uma configuração de vasos comunicantes, tão plurais e multi-direcionais quanto intertextualizadores, onde os códigos de todo tipo (verbais, sonoros, numéricos, espaciais, etc.) se abismam em sua atração comum de poiésis. De abissalidade virtual e conceitual de outra materialidade (softwares, programas, produção computacional), numa progressiva digitalização de informações audiovisuais que fazem parte da nova “ecologia do sensível” (Paul Virilo).

O que significa também a continuação de uma aposta radicalizada pelas vanguardas: a quebra da unidimensionalidade poética a favor de uma intersemiótica, a que pratica a poesia digital. A exploração de novas características e possibilidades dela renova o jogo dos signos e dos significados, recoloca de sua arbitrariedade, mas sobretudo acentua a sua despragmatização e transgressão, num novo salto quântico, no qual, o próprio poeta “não está imerso na linguagem, mas operando no vácuo que permeia as linguagens”, quer dizer, em sua zona de fronteira, de conseguidas contigüidades. Algo que tem a ver com a quimera da tradução, de suas operações metabolizantes e trans-criadoras com a natureza da linguagem em xeque (traduzibilidade/literalidade) – tão celebradas por Benjamin, Octavio Paz ou irmãos Campos–; tem tudo a ver com a poética de margens de André Vallias, que quer ler/decifrar um pedaço de mundo (sejam fragmentos culturais, literários, um poema de Celan, a poética de Trakl no seu não-encontro com Wittgenstein ou aspectos/paradigmas de pensamento que precisam de outra intervenção-visualização). Porque cada forma é uma tradução, uma área/matéria verbovocovisual em suspenso, que ajuda a migrar signos, imagens, sons em nova correspondência (há obras que podem se inscrever numa plástica sonora), numa territorialidade imaterial que valoriza as suas entre-linhas/espaços/tempos. E nisto, a própria pesquisa filológica não fica ausente, pois também sismografa características culturais, derivas sígnicas, acervos líricos, backgrounds de sentidos.

Daí que o nome de diagramas abertos utilizado por Vallias atenda às ramificações, sirva para aproximar a sua leitura gráfica expandida. E seja sintomático que agora possamos nos aproximar da superfície do texto abrindo cada vez mais seus limites (essa herança mallarmaica), seja primeiro em páginas bidimensionais de poemas visuais que trabalham seu próprio curto-circuito sintático, seja no âmbito da tela eletrônica, aquela que equaciona os acentos/nuances de forma verbovocovisual, e que se situa, em suma, nos interstícios, possibilitando uma nova materialidade poética (vejam-se os gráficos/tradução vocálicas, consonantais, e as diversas modulações construtivas desta nova língua franca). Uma redimensionada computação gráfica, onde a inscrição na tela já é heraclitiana, pois muda, se transforma em página expandida / 3D, cujo contínuo não deixa de ampliar seus signos constelativamente. Aliás, inscrições sígnicas com marcada vocação originária, de escrita que se deve descobrir, fazer-se inaugural, como outrora foram os primeiros gestos geométricos escriturais no neolítico.

Não há aqui espaço para um relato pormenorizado de alguns trabalhos já marcantes (ORATORIO, Prompt, Encantação pelo Riso ou Rio), mas ainda assim é significativo focalizar uma certa gravidade tonal em muitos deles (e alguma ironia per se em outros), decorrente de uma leitura interpretativa crítica dessa “modernidade que procura o logos perdido no além, no sonho, no vazio” (Alberto Pimenta), explicitado nas investigações que já têm sido aludidas antes, que ligam uma cultura centro-européia do desassossego com nossos fragmentados dias. O que alimenta uma posição ética numa poética da qual se deve dizer que reune uma vocação de espírito coletivo, na translação de registros, épocas, discursos confrontados. Mas também pelo grau de referências acionadas que fazem parte das obras, o que dimensiona mais a sua freqüência e ratio de ação e incidência.

Contra o monopólio mimético e totalitário da língua, contra a linearidade de um sistema de pensamento (reclamações de Pimenta e de Adorno), temos a curvatura da linguagem, já salientada como possibilidade de simultaneidade lingüística ("porque é preciso dizer mais" expos Blanchot), e trabalhada por André Vallias como leit motiv de uma poética que não deixa de refletir meta-lingüísticamente sobre a natureza-suporte do novo poema visual híbrido, tornado um campo de textualidades (outras), dentro das novas configurações artísticas eletrônicas. Escritura – geométrica muitas vezes – que se reconhece tanto na aceleração dos registros – imagens-movimento que lidam com as imagens-tempo – quanto no adensamento da espessura comunicacional: conhecimento sensorial e especulativo inseparáveis. Já que o poeta se reconhece como "organizador da linguagem" (Maiakovsky) / "designer de linguagem" (Décio Pignatari), como criador de imaginários gráficos.

P0es1a digital (1991-2006) oferece assim um repertório diverso de acessos, com obras interativas, animações, projeções ou impressões que lidam com elementos tecnológicos não como exclusiva razão estética – de mera configuração estrutural –, mas como poética em trânsito, apostando na fábula dos recursos para um “eterno roteiro”. A mostra ratifica este itinerário – sempre in progress – e um lugar para André Vallias na criação de uma poesia visual contemporânea, que não se baseia nos correlatos externos ou referenciais, mas na procura de outra semântica lírica, da poesia como arte-ponte.

Rio de Janeiro, dezembro de 2006

Adolfo Montejo Navas